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Monitoramento da PEGADA HÍDRICA por Bacia Hidrográfica

Dra Rita de Cássia Monteiro Marzullo
alquimia98

Dentro de um contexto de visão estratégica de longo prazo para a Governança da Água,o monitoramento da pegada hídrica de produtos fabricados dentro de cada divisão territorial denominada bacia hidrográfica pode servir como um importante instrumento no processo de tomada de decisão tanto em nível local, através do comitê de bacia hidrográfica, como nas esferas municipal, estadual e federal sobre a alocação do uso da água.

INTRODUÇÃO
As atividades dos usuários de água em uma bacia hidrográfica são competitivas
e se acirram à medida que diminui a disponibilidade hídrica per capita. Gerenciar essa
competição significa criar um conjunto de regras para a alocação da água, o que, em
última instância, é a essência do sistema de gestão de recursos hídricos (PORTO, 2008).
Dentro deste contexto, a pegada hídrica ou waterfootprint em uma abordagem sobre o
ciclo de vida do produto poderá servir como um importante instrumento para a
Governança da água tanto a nível local como regional, rumo a uma ECONOMIA CIRCULAR.

A Política Nacional de Recursos Hídricos, alicerçada na Lei 9.433, 08/01/97
Art. 2º tem por objetivos:

I – assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água,
em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;

II – a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o transporte
aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável;

III – a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem
natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais.

O Brasil possui um Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos
cujos objetivos também estão alicerçados na mesma Lei,Art. 32, na qual é prevista a
coordenação da gestão integrada das águas; a arbitrariedade administrativa dos conflitos
relacionados aos corpos hídricos; a implementação da Política Nacional de Recursos
Hídricos; o planejamento, a regulação e o controle do uso, da preservação e da
recuperação dos corpos hídricos e a devida promoção da cobrança pelo uso do recurso.
Desta forma, o país conta atualmente com os seguintes instrumentos de gestão:

1) Outorga de Direito de Uso de Recursos Hídricos, com a finalidade de
disciplinar os diversos usos da água.

2) Cobrança pelo Uso de Recursos Hídricos, com a finalidade de incentivar
o uso racional e arrecadar recursos financeiros para a recuperação das
bacias.

3) Enquadramento de Corpos de Água, com a finalidade de estabelecer o
nível de qualidade ao longo do tempo (classe) a ser alcançado ou
mantido em um determinado trecho do corpo hídrico (rios, córregos,
etc.).

4) Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos, com a finalidade de
fornecer a base de informações necessárias para a implementação da
Política.

5) Planos de Recursos Hídricos, com a finalidade de fundamentar e orientar
a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e o
gerenciamento da água.

A palavra footprinting, por sua vez, possui diversos significados nas mais
variadas áreas. Ela é usada na área de informática, para explanar todas as informações
necessárias de um determinado sistema em um processo de acumular todos os dados
possíveis de um ambiente de trabalho (SUTTON, 2005); Também utilizada na área de
biologia molecular no sentido de investigação das interações específicas de ligações
entre DNA e proteínas.

Em 1990 Mathis Wackernagel e William Rees da University of British
Columbia definiram a “pegada ecológica” ou Ecological Footprint como uma métrica
que permitia calcular a pressão humana no planeta (GFN,2011). Esta denominação
representa a área de ecossistema necessária para assegurar a sobrevivência de uma
determinada população ou sistema, ou seja, o espaço ecológico correspondente para
sustentar um determinado sistema ou unidade. Desta forma, o método de cálculo da
“pegada ecológica” se transformou em uma das ferramentas de avaliação do desenvolvimento sustentável, transformando o consumo de matéria-prima e a assimilação de dejetos, de um sistema econômico ou população humana, em área correspondente de terra (VAN BELLEN, 2004).

A metodologia de Avaliação do Ciclo de Vida, no entanto foi inicialmente utilizada em um estudo da Coca-Cola no ano de 1969 para comparar o consumo de recursos e emissões associadas na fabricação de diferentes tipos de embalagem da citada bebida enquanto que Ian Boustead realizou um sistema de inventários de ciclo de vida de 1972 á 1979.A metodologia continuou a ser desenvolvida nas décadas seguintes com um rápido crescimento no número de praticantes, o que deu origem ao processo de
padronização internacional para aplicação da metodologia pela norma ISO 14040 no final da década de 90 (EEA, 1997). Em outras palavras, esta metodologia é cada vez mais utilizada como uma ferramenta em processos de tomada de decisão rumo ao desenvolvimento sustentável, com a adoção de critérios ambientais sociais e econômicos, pois considera o ciclo de vida do produto, desde a extração da matériaprima necessária para a sua produção até sua disposição final, fazendo com que a palavra footprint ganhe uma visão mais ampla e sistêmica sobre o que realmente
representa a pressão do ser humano no ambiente.

Svoboda (1995) e Giudice et AL (2006) ao citarem a origem e evolução do
pensamento sistêmico sobre o ciclo de vida de um produto apontam que logo na década
de 1960, cientistas preocupados com a possibilidade de escassez do recurso “petróleo”
começaram a estudar o impacto do consumo de energia ao longo do seu ciclo de vida
(desde a sua extração), resultando em estudos de modelagem global que previam os
efeitos do crescimento mundial da população sobre a demanda de um recurso finito para
o suprimento de energia e matéria-prima. Este alerta fez com que a Coca-cola iniciasse
o estudo de avaliação de diferentes tipos de garrafa para acomodar e comercializar seu
produto. Este estudo, com a visão do ciclo de vida, buscou identificar qual tipo de
recipiente, com diferentes matérias-primas proporcionava menor demanda de recursos
materiais e energéticos e também proporcionava menor lançamento de rejeitos para o
meio ambiente. Na década de 1970, a agencia de proteção ambiental dos Estados
Unidos – U.S. Environmental Protection Agency (EPA), redefiniu esta metodologia
criando uma abordagem conhecida como REPA (Resource and Environmental Profile
Analysis) – Análise de recursos e perfis ambientais. Aproximadamente 15 REPAs foram
elaborados entre 1970 e 1975 guiados pela crise do petróleo de 1973. Ainda na década
de 70, em 1972, é fundada a UNEP (United Nations Environment Programme ) em
português, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Esta
instituição é a principal autoridade global em meio ambiente, é a agência do Sistema
das Nações Unidas (ONU) responsável por promover a conservação do meio ambiente e
o uso eficiente de recursos no contexto do desenvolvimento sustentável. Já em 1979, é
fundada a SETAC, outra organização de caráter interdisciplinar entre cientistas das
diversas áreas de conhecimento com a finalidade de encontrar soluções para problemas
ambientais.

Atualmente, a SETAC é composta por grupos da Academia, Governo e
Indústria. Na década de 1980 houve o início da preocupação com o gerenciamento de
resíduos perigosos, incorporando a lógica do “ciclo de vida” em avaliações de risco.

Também nesta década iniciou-se a preocupação com as emissões no
“movimento verde” na Europa e o uso do ciclo de vida foi consolidado em um método
denominado ECOBALANCE enquanto que o método REPA era consolidado nos
Estados Unidos. Esta década também foi a responsável sobre a difusão do conceito de
ciclo de vida na qual empresas multinacionais como Procter&Gamble iniciam estudos
comparativos de embalagens de sabão em pó e surfactantes. Na década de 1990, o
Conselho Mundial para soluções em resíduos sólidos finaliza um estudo de ACV
comparativo em energia e impactos ambientais de diferentes tipos de “sacolas de
super-mercado” (papel ou plástico). Estudos semelhantes para “fraldas” foram
realizados, proporcionando grandes polêmicas nos resultados alcançados. Na época,
concluiu-se então que a avaliação resulta em diferentes resultados dependendo do foco
avaliado: energia, recursos, água, resíduos (sólidos, atmosféricos, líquidos) e da
fronteira adotada.

Em 2000, por conta das expectativas de início de um novo século, ministros
ambientais de diversos países se reuniram em Malmo na Suécia para elaborar uma
declaração que estabelecia a agenda do século XXI em uma economia baseada no Ciclo
de Vida de Produtos. Em 2002, embasada na declaração de Malmo, UNEP e SETAC se
unem e lançam a “iniciativa de ciclo de vida” com o propósito de difundir a aplicação e
uso desta metodologia no mundo.
setac

A Figura 1 mostra a evolução da aplicação da metodologia de Avaliação do
Ciclo de Vida (ACV) com a entrada da Organização Internacional de normalização ISO,
através do lançamento da primeira norma da série ISO 14040 em 1997, que deu início
ao processo de padronização das principais diretrizes de uma ACV através de diversas
normas subseqüentes, elaboradas entre 1997 e 2000:
· ISO 14040: Princípios e Estrutura
· ISO 14041: Definições de escopo e análise do inventário
· ISO 14042: Avaliação do impacto do ciclo de vida
· ISO 14043: Interpretação do ciclo de vida
· ISO TR 14047: Exemplos para a aplicação da ISO 14042
· ISO TS14048: Formato da apresentação de dados
· ISO TR 14049: Exemplos de aplicação da ISO 14041 para definição de
objetivos e escopo e análise de inventário

Em 2006, a ISO revisou e publicou uma segunda edição das normas da série
14040 sobre ACV. As normas ISO 14040,Gestão Ambiental – Avaliação do ciclo de
vida – Princípios e Estrutura e ISO 14044, Gestão Ambiental – Avaliação do ciclo de
vida – Requisitos e Diretrizes, anulam e substituem as normas anteriores.
As normas em uso atualmente preveem que a elaboração de uma ACV está
estruturada em quatro fases para diversas aplicações conforme a Figura 2.

acv

A fase de análise de inventário calcula todos os aspectos que interagem com o
meio ambiente em todo o seu ciclo: emissões atmosféricas, emissões de carga ambiental
para os corpos hídricos, consumo de recursos naturais e energéticos (inclusive água),
emissões de resíduos sólidos e necessidade de transformação, ocupação e uso da terra.
Desta forma, a partir dos inventários do ciclo de vida de um produto, é possível extrair
diversos tipos de indicadores de footprint para cada produto. No entanto, estes
indicadores representam apenas uma contabilização dos aspectos (consumo de recursos
e emissões), sem refletir o impacto causado. A metodologia de Avaliação do Ciclo de
Vida sugere então que, após a fase de análise dos inventários do Ciclo de Vida, cada
aspecto seja relacionado ao seu respectivo impacto (fase de análise de impacto),
avaliando a pegada na dimensão não apenas do seu tamanho e sim de sua profundidade.
A aplicabilidade da metodologia como uma ferramenta ambiental tornou
possível a obtenção de indicadores como o Wood Footprint para o cálculo do ciclo de
vida das emissões de gases que potencialmente causam o efeito estufa em produtos
feitos em madeira (FWC, 2011).

Sem se apegar à metodologia de Avaliação do Ciclo de Vida, o termo “water
footprint” foi inicialmente citado por Tony Allan No início da década de 90 para
descrever a tendência que alguns países possuem de suprir a necessidade hídrica de
outros países através da importação de uma grande parcela de água virtual, ou seja, a
água necessária para a produção do produto importado. Em 2002 Arjen Hoekstra
juntamente com P. Hung utilizaram pela primeira vez o termo water footprint para
expressar a apropriação do recurso água por uma nação com a soma da água virtual
mais a água de consumo doméstico, em analogia à já existente terminologia sobre
pegada ecológica (HOEKSTRA, 2002).
Em 2009 foi lançada internacionalmente uma proposta para a elaboração de uma nova norma ISO sobre water footprint (ou pegada hídrica) dentro de uma abordagem de Avaliação do Ciclo de Vida, visando avaliar o impacto causado nos corpos hídricos em conseqüência da existência de determinado
produto ou determinada organização. Em 2011 o rascunho da proposta para a norma
tornou-se oficialmente um item de trabalho para a efetivação e a mesma foi publicada em 2014.

OBJETIVO DO TRABALHO

Este trabalho tem como objetivo principal, expor que a determinação da pegada hídrica pode ser utilizada como um instrumento de tomada de decisão dentro de um contexto de gestão
descentralizada em um comitê de bacia hidrográfica.

DIFERENTES ABORDAGENS PARA “WATER FOOTPRINT”

Hoekstra et al (2011), fundadores da Water Footprint Network, sugerem que a
pegada hídrica seja representada pela soma (em volume) das águas azul, verde e cinza
utilizadas na cadeia produtiva de um determinado produto, representando o tamanho da
pegada.
A norma ISO 14046 sobre Water Footprint sugere que a pegada hídrica seja representada pelo impacto causado aos corpos hídricos em uma abordagem metodológica semelhante às sugeridas pelas ISOs 14040 e 14044 sobre Avaliação do Ciclo de Vida, representando assim tanto o tamanho (com as devidas
considerações das particularidades locais de disponibilidade de água) quanto a
profundidade da pegada (com as respectivas avaliações de impacto).

Ao fazer uma análise crítica entre as duas abordagens metodológicas,
Santos(2011) conclui que as particularidades locais, a diversidade geográfica e as
características de variação temporal dos recursos hídricos devem ser levadas em
consideração nas análises para que sejam alcançados resultados significativos sobre o
consumo de recursos hídricos, o que não é feito nos cálculos de pegada hídrica da
metodologia da WFN. Fatores de impacto locais são fundamentais nas análises, já que
os impactos do consumo de água em regiões abundantes em água são completamente
diferentes dos impactos onde há escassez hídrica.

ABORDAGEM DA WFN (Water Footprint Network)

De acordo com Hoekstra ( 2007), a pegada hídrica é um indicador de uso da
água, que leva em conta não só o uso direto de um consumidor ou produtor, mas
também o uso indireto dos recursos hídricos. Assim, a pegada hídrica de um produto é o
volume de água utilizado na produção deste, medida através de toda sua cadeia
produtiva. A pegada hídrica de uma comunidade ou indivíduo é definida como o
volume total de água que é utilizado para produzir os bens e serviços consumidos pelo
individuo ou pela comunidade e também pode ser calculada para qualquer grupo bem
definido de consumidores, cidade, estado, país, etc além de ser calculada para uma
atividade, produto ou serviço específico.

Para Hoekstra et al (2011), a pegada hídrica azul é representada pelo consumo
dos recursos oriundos de águas superficiais e subterrâneas( rios, lagos, nascentes,
mananciais, lençóis freáticos e aquíferos) ao longo da cadeia produtiva de bens e
serviços. Este consumo significa a perda desta determinada quantidade de água dos
corpos hídricos de uma bacia hidrográfica. As perdas ocorrem quando esta água
consumida é evaporada, retorna para outra bacia ou oceano, ou é incorporada ao
produto. A pegada hídrica verde, segundo os mesmos autores, representam o consumo
de água de chuva absorvida pelo solo e plantas, assim como a umidade do solo. A
pegada hídrica verde é então o volume de água perdida pela evapotranspiração,
caracterizando a necessidade hídrica de cada cultura.
Aldaya et AL(2008) estima que a pegada hídrica verde representa a maior parte
dos fluxos de troca de água-virtual pelo mundo, especialmente através de produtos
agrícolas. Chapagain and Hoekstra (2004) estimam que dois terços do volume total de
água utilizada em cultivos agrícolas sejam de “água verde”.
A pegada hídrica cinza é definida como o volume de água necessário para
assimilar a carga de poluentes contida nos efluentes gerados durante a produção dos
bens e serviços. O volume de assimilação ou diluição necessário é calculado baseado no
volume real de efluentes não tratados dispostos nos corpos hídricos naturais. Isso
significa que um aumento no uso de tratamentos de efluentes irá reduzir a pegada
hídrica cinza de um serviço, por exemplo (HOEKSTRA ET AL ,2011).

ABORGAGEM DE AVALIAÇÃO DO CICLO DE VIDA (Life cycle iniciative)

Apesar do uso da ACV existir há algumas décadas, o fato de que a maior parte
das metodologias de impacto usadas foram desenvolvidas em países industrializados
que praticamente ainda não sofrem de escassez hídrica fez com que o tema “uso de
recursos hídricos” recebesse pouca atenção dentro do contexto de ciclo de vida até
pouco tempo atrás (KOEHLER, 2008).
A elaboração de uma ACV envolve a quantificação dos aspectos ambientais
(consumo de recursos materiais e energéticos e emissões de poluentes) em todo o ciclo
de vida de um produto que é representado pelas etapas que vão do berço ao túmulo
apresentadas na Figura 3, sendo que a ECONOMIA CIRCULAR se inicia com os processos de reciclagem antes dos produtos irem para a fase de disposição final.

etapas_ACV

A partir da separação dos usos de água em “consuntivos” (captação para uso
industrial, na irrigação, abastecimento, etc.) e “ não- consuntivos” (geração de energia
hidrelétrica, navegação) ,Owens (2002) classificou alguns indicadores para uso e
consumo de água.

Heuvelmans et al. (2005) sugerem três categorias de impacto ambiental e seus
respectivos indicadores ambientais, associados à disponibilidade hídrica. Duas das
categorias sugeridas são relativas às entradas no sistema: esgotamento dos recursos
(que diz respeito ao futuro das reservas hídricas) e uso do solo ( que se preocupa com as
mudanças das respostas relativas ao ciclo hidrológico de acordo com a ocupação do
solo). A terceira categoria sugerida diz respeito às saídas do sistema: balanço hídrico
regional, relacionado a riscos de escassez hídrica, enchentes e disponibilidade hídrica
para locais a jusante.

Os métodos para a determinação da pegada hídrica, relacionada à metodologia
de ACV podem variar desde a simples obtenção de inventários até complexos modelos
de avaliação de impacto na qual conseqüências para a saúde humana, ecosistemas e
recursos naturais (tanto no midpoint como no endpoint) são avaliadas. O desafio
conceitual se inicia a partir da obtenção dos inventários, pois atualmente os inventários
do ciclo de vida não abrangem informações sobre a diferenciação geográfica, fluxos e
qualidade da água (BERGER. e FINKBEINER, 2011).

Marzullo3 et al (2010), ao sugerirem uma união metodológica entre a exibida
pela WFN e a abordagem da metodologia de ACV, constataram que os inventários do
ciclo de vida não devem ser consolidados para o cálculo da água cinza pois a carga
ambiental é lançada com impactos diferenciados para cada corpo hídrico receptor, o
que diferencia da consolidação dos inventários de emissões de CO2, por exemplo, na
qual o impacto causado (mudanças climáticas) é global e não regional.

De acordo com Koehler (2008), em 2007 a “UNEP/SETAC Life Cycle Initiative”, formou um grupo de especialistas para desenvolver um esquema de inventário de ACV integrado com a avaliação de uso da água e conseqüente caracterização de danos às áreas de proteção, saúde humana, qualidade dos ecossistemas e recursos naturais. Os esforços são direcionados ao desenvolvimento de metodologias
que permitam a comparação e escolha entre alternativas de produtos baseados em diferentes sistemas de produção (por exemplo, escolher entre um produto cultivado através de irrigação versus o mesmo o mesmo produto produzido a partir de agricultura alimentada por água de chuva) e que induzam mudanças nos padrões de consumo. Este grupo é composto por pesquisadores de diversas instituições acadêmicas e cientificas e representantes de indústrias de todo o mundo.

Bayart et al. (2010), em uma tentativa de refletir alguns resultados do citado
grupo, sugerem uma série de indicadores de impacto em diversos níveis de produção,
que refletem diferentes áreas de proteção, além de criar um esquema que possibilita
diferenciar os impactos do uso da água em diferentes contextos regionais.

Pfister et al. (2009) propõem um indicador de “privação de água” como um
método de avaliação dos impactos causados pelo consumo dos recursos hídricos. Este
indicador é calculado em função da escassez hídrica considerando as condições
hidrológicas regionais. Variações sazonais de precipitação e de capacidade de
armazenamento hídrico também foram incluídas. O indicador proposto é posteriormente
relacionado à categoria de danos à saúde humana assim como à desnutrição causada
pela indisponibilidade de água potável para irrigação e redução de cultivos. Da mesma
forma, o citado indicador também se relaciona à qualidade dos ecossistemas e a
deficiência na produção primária (matéria orgânica) devido à escassez hídrica.

Na metodologia desenvolvida por Ridoutt & Pfister (2010) foi utilizado o índice
de estresse hídrico (WSI – “water stress índex”) desenvolvido por Pfister et al. (2009)
para obter os fatores de caracterização de estresse hídrico relevantes a cada local onde a
água foi consumida.

A Organização Internacional de Normalização (ISO), através de um grupo de
trabalho composto por especialistas de mais de 30 países, iniciou em 2009 a elaboração
de um rascunho preliminar sobre o que poderia ser considerado em uma norma de
pegada hídrica. Este rascunho preliminar se tornou recentemente um rascunho oficial
da norma ISO 14046.

O Brasil participou ativamente na elaboração desta proposta através de uma comissão de estudos do comitê brasileiro de meio ambiente da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT/CB38) composta por integrantes da academia e indústria, inclusive com a participação da CNI ( Confederação nacional da Industria). Esta nova norma
(ISO 14046) apresenta diretrizes para a avaliação da pegada hídrica dentro de
uma abordagem de ACV baseada nas normas ISO 14040 E 14044.

ANÁLISE

Para Santos(2011), da mesma forma que já acontece com a pegada de carbono,
a pegada hídrica também tem o potencial de permitir que os consumidores se tornem
mais conscientes dos impactos de suas decisões e desse modo ter mais
responsabilidades em seus padrões de consumo. Desta forma, a pegada hídrica
calculada a partir da metodologia da WFN pode confundir os consumidores quanto aos
reais impactos causados ao ambiente, já que apenas soma os recursos hídricos utilizados
(azul, verde e cinza) sem levar em consideração as diferenças entre as localidades de
consumo e suas possibilidades ou não de estresse hídrico. A mesma autora também
avalia que o mesmo não ocorre ao se utilizar a metodologia desenvolvida por
pesquisadores da ACV, que vêm desenvolvendo categorias de caracterização dos
impactos potenciais de acordo com as variabilidades espaço temporais de cada
localidade.

Segundo THOMAS, P.(2011) o Brasil possui 12% da disponibilidade de água
do mundo, distribuída em 12 regiões hidrográficas. Entretanto esta distribuição é
desigual pelo país pois 75% da água disponível no Brasil está alocada na região
Amazônica, onde há concentração de apenas 5% da população brasileira. O restante
(25%) está alocada pelo resto do país, com a concentração de 95% da população e a
demanda total de água por micro bacia está concentrada justamente nesta região. Como
conseqüência da distribuição desigual de água, o estresse hídrico ocorre em termos de
quantidade e qualidade da água em regiões com grandes densidades demográficas.
Para que haja a Governança da água através do monitoramento da pegada
hídrica em cada comitê de bacia hidrográfica, em primeiro lugar seria necessário o
engajamento das empresas dentro de um processo de evolução sustentável com o monitoramento do inventário “gate-to-gate” .

A Figura 4 exemplifica os elementos a serem monitorados na forma de inventários do ciclo de vida por cada empresa (portão de entrada /portão de saída) e cada prefeitura que administra uma determinada população demográfica, denominada aqui de unidade de processo.

unidade-de_processo
Figura4: elementos de monitoramento em uma abordagem “gate-to-gate”
(elaboração do autor)

No caso da unidade de processo ser considerada como uma prefeitura municipal,
o produto a qual a Figura 4 se refere seria o nível de qualidade de vida da população
envolvida, amarrado a indicadores de saúde, educação, renda e índice de
desenvolvimento humano.

Notar que a água (tanto na fase de captação quanto na fase de devolução aos
corpos hídricos) representa apenas um item de monitoramento dentro de um contexto
de Avaliação do Ciclo de Vida para uma evolução sustentável. Neste caso, no inventário
de entradas deverá constar, além da quantidade, a origem de captação de água, a
disponibilidade sazonal, os níveis de precipitação local assim como os parâmetros de
qualidade da água. Da mesma forma, no inventário de saídas toda a carga de poluentes
(em massa) deverá estar inventariada para um determinado volume de efluentes que é
lançado nos corpos hídricos ao longo do tempo. Todos os aspectos ambientais de
entrada e saída (interações da unidade de processo com o meio ambiente) deverão estar
devidamente alocados para cada produto que sai do sistema, conforme diretrizes
estabelecidas pelas normas NBR ISO 14040 e NBR ISO 14044.

Depois de sistematizado o monitoramento de inventários do ciclo de vida, cada
aspecto inventariado será associado ao respectivo impacto na bacia hidrográfica em que
se encontra a unidade de processo em questão, ou seja para cada categoria de impacto
analisada será possível abstrair um indicador de pegada hídrica local para cada “produto
produzido” no âmbito desta bacia.

Supondo que todas as unidades de processo existentes em uma determinada
bacia hidrográfica tenham a pegada hídrica de seus produtos conhecida através do
monitoramento dos inventários, será possível prever o grau de necessidade hídrica desta
bacia para que a mesma suporte a produção dos produtos que constam em sua saída de
maneira sustentável. A bacia hidrográfica passará então a ter o comportamento de uma
unidade de processo em escala ampliada, como sugere a Figura 5.

bacia_ACV
Figura 5: A concepção de uma bacia hidrográfica como uma unidade de processo (elaboração do autor)

CONCLUSÕES

Partindo-se do princípio de que todo processo de Governança requer um
processo de tomada de decisão e que a metodologia de Avaliação do Ciclo de Vida é
apontada mundialmente como uma importante ferramenta que serve de instrumento para
este processo, é possível concluir que a pegada hídrica poderá contribuir
significativamente na inovação de alocação da água dentro de um sistema de
gerenciamento de recursos hídricos.

Dentro de um processo de Governança da Água, a determinação da pegada
hídrica de cada produto que é produzido em uma determinada bacia hidrográfica pode
se tornar uma ferramenta analítica, podendo inclusive servir de instrumento para
auxiliar a compreender como estes produtos contribuem para escassez e poluição dos
recursos hídricos dentro de um contexto de avaliação dos impactos relacionados.

Adotando-se uma visão estratégica de muito longo prazo, o uso do
monitoramento da pegada hídrica tende a ser um instrumento de extrema importância
em processos de tomada de decisões estratégicas sobre o uso de recursos pelas
atividades humanas de modo sustentável inclusive sobre o sistema hídrico mundial.
Como um instrumento regional, a avaliação de pegada hídrica pode auxiliar na
compreensão do que pode ser feito em termos de planejamento estratégico para a
outorga e cobrança pelo uso da água.

Com esta forma de monitoramento pela pegada hídrica dos produtos de uma
bacia hidrográfica, ficaria mais fácil assegurar à atual e às futuras gerações a necessária
disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos assim
como induzir a uma utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o
transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável, como prevê a política
Nacional de Recursos Hídricos.

O monitoramento da pegada hídrica também contribuiria para disciplinar os
diversos usos da água (facilitando o processo de outorga) além de incentivar o uso
racional para a melhor adequação dos recursos financeiros arrecadados pela cobrança do
uso da água.

Em questões de sustentabilidade, é preciso a adoção de uma visão sistêmica na
perspectiva de que nada existe por si só, ou seja, a realização de um evento está sempre
interligada à outro evento com diferentes causas e com os respectivos efeitos. A
metodologia de Avaliação do Ciclo de Vida pretende usar esta visão sistêmica dentro de
um contexto científico de sustentabilidade na qual a água desempenha um importante
papel. Desta forma, os desafios metodológicos serão mais facilmente vencidos.

Artigo apresentado no III GOVÁGUA – Congresso Internacional de Governança da Água – USP em novembro de 2011 com o título “DESAFIOS METODOLÓGICOS PARA A GOVERNANÇA DA ÁGUA
ATRAVÉS DO MONITORAMENTO DA PEGADA HÍDRICA”

alquimia96

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